Por Eduardo Carli de Moraes, 10 de Maio de 2024
A escalada dos protestos universitários pelo globo afora – tema do novo programa The Stream da Al Jazeera – se exacerba na iminência da ofensiva sionista contra Rafah, ao sul de Gaza, onde 1,5 milhão de palestinos estão refugiados (leia em Jacobin porquê ela acarretará “a morte em massa de civis”); de Nova Yorke a Paris, de São Paulo a Amsterdam, nos últimos dias testemunhamos uma onda de okupas de campus e de brutalidades policiais contra as mesmas.
Em Revista Opera, Sarah Babiker escreve: “o movimento nos campi universitários dos EUA é prova de uma divisão geracional, com os jovens se tornando mais simpáticos à luta do povo palestino. Por outro lado, os movimentos interseccionais recuperaram uma tradição anticolonialista para desconstruir as narrativas israelenses, unindo coletivos racializados que enquadram a questão israelense como mais um exemplo de colonialismo e supremacismo racistas.” (https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/05/07/revolta-universitaria-e-acampamentos-uma-primavera-antissionista/)
Nos últimos dias, entre 5 e 10 de Maio de 2024, acompanhei com perplexidade a transformação da Universidade em que estudei por 6 meses, enquanto doutorando da UFG em período de “sanduíche”, transformada num cenário de guerra civil entre estudantes e soldados da tropa de choque; os prédios da UvA e seus arredores foram tomados por barricadas, com centenas de tijolos arrancados dos pavimentos pelos estudantes em insurreição; as autoridades da Universidade de Amsterdam, em conluio com a prefeita Femke Hamselma, mandaram repressão pesada pra cima dos manifestantes, realizando mais de 100 detenções desde segunda-feira e demolindo com pás e tratores as barricadas cujos escombros foram lançados aos canais.
O mercado turístico da metrópole que recebe 17 milhões de visitantes ao ano foi trazido a um ponto de ruptura com todo o centro transtornado por manifestações e batalhas campais; até a grande imprensa corporativa não pôde ficar indiferente: o Het Parool botou os protestos na UvA como pauta principal de seu portal e até agora as tensões parecem acesas tanto nos arredores da universidade, com aglomerações e conflitos tanto no metrô Rokin quanto na Rembrandtplein.
Eu havia acabado de começar meus estudos na UvA, sob orientação de Monique Roelofs, quando o 7 de Outubro aconteceu; nos 6 meses seguintes, não tive escolha senão realizar meus estudos de Filosofia do Filme em meio a uma onda incessante de protestos; era muitas vezes impossível chegar ao prédio das Ciências Humanas, um dos epicentros dos clashes desta semana, sem trombar com o protesto diário que se desenrolou na Estação Central por mais de 100 dias, sem pular nenhum; a resiliência dos manifestantes não arrefeceu, pelo contrário: neste Maio de 2024 mostra-se a disposição para a radicalização do movimento.
Em Outubro, a Dam Square já estava frequentemente lotada com cidadãos solidários ao povo palestino, fervilhando diante do Palácio Real, para desespero dos monarcas e do primeiro ministro reacinha Mark Rutte – 6 meses atrás, A Casa de Vidro publicava um primeiro documentário curta-metragem sobre o tema: PALESTINE WILL BE FREE (?):
No começo do ano de 2024, já havia se espalhado por várias das principais cidades dos Países Baixos um movimentos de sit-ins nas estações de metrô e trem – na hora do rush, os manifestantes travavam a normalidade dos fluxos de transporte para protestar contra o genocídio em curso; em Utrecht, um dos epicentros dos atuais levantes, realizamos outro documentário, Let Gaza Live, filmado em 7 de Janeiro.
Semanas depois, os olhos do mundo se voltaram para outra cidade holandesa: em Den Haag (Haia), a Corte Suprema da ONU julgou o mérito da denúncia instaurada pela África do Sul contra o estado de Israel; por dois dias, numa temperatura enregelante, estive fora do Palácio da Paz no meio da massa de manifestantes enquanto o I.C.J. (International Court of Justice) avaliava o caso e concluía pela aceitação plena do que foi pleiteado pela equipe jurídica sul-africana. Disso resultou outro documentário, “Viva Viva Palestina!”:
Seu segundo capítulo captou a reação das ruas de Amsterdam à decisão do ICJ de que é “plausível” que o estado de Israel esteja cometendo um genocídio contra o povo palestino; o filme inicia com um protesto estudantil na UvA que, devido ao pequeno contingente de estudantes, não suscitou repressão policial, mas ainda sim serviu como sintoma premonitório do que estaria por vir:
Nos meus dois últimos dias de “sanduíche” na Holanda, pude participar de mais dois protestos: em 2 de Março, em Haia, tentamos ocupar a embaixada de Israel mas fomos atacados pela polícia montada e acabamos deslocados a fórceps, na base de empurrões, cassetetes e coices de cavalo, para longe do local onde o protesto havia sido marcado; ilhados num “cercadinho” e rodeados por um alto contingente de policiais armados, fizemos uma manifestação relâmpago enquanto a mídia global enchia-se de relatos sobre o Massacre da Farinha e a ativista dos direitos animais Aysis Plet me contava sobre sua indignação diante do cenário indigesto:
No dia seguinte, 3 de Março, véspera de meu retorno ao Brasil, Amsterdam foi palco de manifestações enquanto o número de profissionais da saúde – médicos (as) e enfermeiros (as) massacrados por Israel em Gaza ultrapassava 400. Em frente a um dos principais hospitais da cidade, os manifestantes abriram uma gigantesca bandeira palestina e leram as últimas palavras de um médico palestino que “virou mártir”:
Em breve, vou soltar no canal d’A Casa de Vidro um último documentário sobre a causa palestina com o que restou de imagens captadas nestes intensos protestos que pude acompanhar por lá. Sigo acompanhando com muito interesse as notícias que estão chegando sobre os protestos e ocupações na Universidade de Amsterdam e brindo a rebeldia desta estudantada que conhece o sentido teórico e prático da solidariedade internacionalista e da luta contra as opressões para além das fronteiras nacionais. Também acompanho com interesse a ocupação que acaba de começar na FFLCH-USP, outra instituição que me formou e cujo corpo discente agora me desperta novamente o senso de empatia e de camaradagem. A gente lê muito sobre Maio de 1968 nos livros; Maio de 2024, ao que parece, vem com vários aspectos semelhantes, e dele somos contemporâneos – incandesce no agora.
O genocídio perpetrado pelo sionismo e seus parceiros ocidentais em Gaza, longe de conseguir consumar seu objetivo fascista de exterminar o Hamas e consumar a limpeza étnica do território em prol do projeto colonial e supremacista, parece produzir um efeito inesperado (pelos opressores, que parecem esperar que os oprimidos se calem e aceitem resignados a bota em seu pescoço e a vida num campo de concentração): com a estudantada na vanguarda, Maio de 2024 está repleto dos gestos, protestos e ocupas que dão corpo e concretude ao lema globalizar a Intifada.
Esta globalização da Intifada inclui não apenas as barricadas e okupas mas também ações simbólicas e de re-significação: na Universidade de Columbia, os estudantes amotinados decidiram rebatizar um dos prédios da instituição: ele passou a se chamar Hindi’s Hall, uma homenagem à garota palestina Hind Rajab, que tinha 6 anos de idade quando foi assassinada pelas tropas israelenses em Gaza.
Segundo a reportagem da Al Jazeera, uma “gravação telefônica de Hindi se tornou viral nas redes sociais” e revela as terríveis vivências da pequena no fim de sua vida tão precocemente interrompida. Numa ligação para o Crescente Vermelho que durou cerca de três horas, “Hindi implorou às equipes de resgate que viessem salvá-la depois que o carro da família foi atacado e ela se tornou a única sobrevivente, presa lá dentro com os seus parentes mortos.” As forças armadas israelenses também mataram dois paramédicos que tentaram o resgate. Segundo G1, “os corpos de Hind Rajab, de seu tio, de sua tia e de seus três primos foram encontrados em um carro, no subúrbio de Tel al-Hawa, na cidade de Gaza. Familiares que participaram do reconhecimento relatam que o carro estava cheio de buracos de bala.” (Leia mais aqui na Wikipedia)
VEJA TB: https://www.democracynow.org/2024/5/8/student_protests
Publicado em: 10/05/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia